A Peça Que Falta
A Peça Que Falta

A chance de sair um pouco da rotina veio hoje. Agora as quartas, não terei mais aula e me pus a fazer um lanche com Cadu e Michelle. Blusa social e uma velha calça jeans, mais violão e mochila nas costas. Este sou eu andando pelo shopping procurando com meus amigos algo a comer.

Primeiro piso em frente ao Bob’s. Planos são traçados para o final de semana. Ao comerem, piadinhas sobre os freqüentadores do Templo de Consumo da Zona Norte... só uma galera bizarra. Michelle (como sempre) quebra a corrente e se vai. Daí, os filósofos da madrugada, Cadu e eu a mesa.

E do nada... começamos mais uma vez a filosofar, nem me perguntem como foi iniciado o assunto pq sinceramente não lembro. O papo era sobre a realidade como a vemos. Meu amigo Cadu às vezes sente a necessidade de experimentar coisas novas... precisa se desprender das coisas tal qual como se apresentam. De certa forma, eu tb. Preciso me desprender desta coisa invisível mas presente em minha vida há um bom tempo. Disse-lhe q posso dividir a minha existência em duas partes.

A primeira era de uma época mais simples, mais inocente e as coisas eram facilmente palatáveis. Depois, o amargo das coisas me vem... o ar é pesado e tudo é como agora... o presente. Como Cadu, eu tenho a necessidade de poder enxergar além do q me é apresentado, além dos meus sentidos. O papo começou a ser filosofado mesmo a partir daí.

Uma comparação ligeira com Neo, personagem de Keannu Reeves em Matrix, que teve por toda a sua existência um espeto em sua cabeça, uma sensação de q havia algo de errado com o mundo, mas q não podia ver, cheirar, ouvir, sentir na pele, cheirar... mas estava lá... em sua mente o deixando louco.

Assim foi comigo na segunda metade da minha existência como dito, mas fui me dando conta disso aos poucos. Não que eu sinta algo de errado com o mundo, como Neo sentira, mas algo que falta a ser concluído. A peça que falta a ser encaixada em minha vida, a verdade a ser descoberta. Se isso é alcançar o verdadeiro sentido da vida ou simplesmente achar uma forma de me sentir melhor, eu não sei. Mas me indago quanto a isso.

Disse lhe q esta peça é vista como um conjunto. As pessoas, crescem, vão à escola, faculdades, trabalho, conhecem a pessoa com quem casam (normalmente), vêm os filhos, o envelhecer para morrer finalmente. E ai o quebra cabeça é completo. Essa é a idéia comumente passada a todos. Mas ai ele me fez a pergunta: “Pra vc, que peça é essa que está faltando? É uma garota, um emprego? Realização pessoal, o que?” Não soube responder, só sei que algo falta.

Todo o papo que tive se resume a uma sensação que tenho nos momentos mais expressivos que passo que são poucos e duram pouco tempo. Coisas aparentemente bobas como ver uma fotografia, ouvir uma música ou um filme desencadeiam essa sensação. É como se chegasse ao ápice de um momento que me marcasse e daí eu identificasse o que me falta, ou pelo menos tenho um vislumbre do que seria e gostaria que fosse. É uma sensação de se obter o que ninguém pode, conseguir o q ninguém tem. Estado de Plenitude. E na maioria das vezes acontecem sempre quando preciso de um escape de pressões.

Assim foi na semana passada ao ver o filme Americano. A história de um jovem q termina a escola e não sabe que rumo seguir na vida. Resultado é viajar pela Espanha com mochila nas costas junto com amigos. O filme fez bater o estado de espírito que conheço há tempos, desde que adentrei a tal segunda fase de minha vida. É o querer e mais do que isso, a necessidade de ver além do óbvio. Desprender-me, embora não saiba como. Hoje, novamente... ao sentar na mesinha amarela em frente ao Bob’s me vem isso.Ver além do óbvio, retirar o véu da fantasia imposta a nós chamada de Maya, realidade como todos encaram como verdadeira e tornar-se como Buda, O Desperto.

Em um mundo na qual todos fazem algo, em que sempre há os fodões, me pergunto como tornar a existência menos ínfima. Cadu tira de sua mochila um velho livro fedorento de Fernando Pessoa. Ele lê o trecho chamado Poema em Linha Reta. Me identifico no ato com que é lido. O poema fala dos feitos de todos e a insignificância de um. A notoriedade de uns especiais e a solidão de um qualquer. Daí pergunto-me de novo qual é a peça pra me desprender e quem sabe fazer algo para q deixe de ser um mero insignificante pra ter um pouco da nobreza dos fodões... entretanto, mais do que isso, é desprender-me para obter o que falta... seja lá o que isso for.

A seguir, Fernando Pessoa...

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,Indesculpavelmente sujo,Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,Que tenho sofrido enxovalhos e calado,Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachadoPara fora da possibilidade do soco;Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigoNunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humanaQue confessasse não um pecado, mas uma infâmia;Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?Eu, que venho sido vil, literalmente vil,Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
2 Responses
  1. Anônimo Says:

    Se todos nós temos o mesmo ciclo dentro de nossas vidas, talvez seja errado pensar que os outros também não sintam tudo aquilo que você sente.
    Talvez - e muito provavelmente - os fodões não sejam fodões. E sim Qualqueres que tentam se passar por isso.
    A "fodeza" não está no fingimento. E o que é fingir? Ser aquilo que não é. Então a "fodeza" não pode estar em outra coisa se não no ato da existência máxima.

    Acho que Fernando Pessoa fez um protesto aos seres humanos, aqueles que passam toda a vida querendo ser algo mais do que seres humanos. O que todos querem ser? Não sei, mas é aquilo que nunca serão. Porque buscam isso nos outros, nas coisas, e não deve ser bem por aí...eu acho.

    Um abraço, cara!


  2. Anônimo Says:

    Que lindo! Estou passando pelo mesmo problema e sofrendo muito por isso. Como é dura a realidade de ser adulto. Só tenho um porém a lhe dizer: não é porque alguém aparenta felicidade que é realmente feliz. Pessoas como você e eu somos pelo menos um pouco mais satisfeitas e dignas porque fazemos o que queremos e amamos, não só porque é "bonitinho" para a vista alheia.
    È claro que sofremos mais também porque damos a cara para bater mais vezes que os outros mas é como diz a minha frase preferida do Martin Luther King:
    "Não somos o que deveríamos ser, não somos o que desejamos ser, não somos o que iríamos ser. Mas graças a Deus, não somos o que éramos." Boa sorte!
    Beijos